Quando Dormem as Feiticeiras - Carlos Costa

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Há fadas que são como as chamas de um vulcão que explode, e, ainda assim, sua delicadeza é como uma flor que desabrocha no silêncio após uma palavra de ternura. (Carlos Costa)


O ano é 1491 e o lugar é o sul da França nas proximidades das velhas cidades de Albi e Cordes. Este livro conta a história do que restou de uma irmandade misteriosa e fascinante de feiticeiras-lobas. O lobo representava um portal de comunicação com o mundo espiritual e o poder de manipulação sobre a esfera material e tangível.

Mulheres de beleza extraordinária, fortes e orgulhosas de suas existências, dedicadas, ainda que naqueles tempos da Inquisição, à magia antiga. Mas isso é apenas parte do seu mistério envolvente, pois muito mais será revelado nessa história que extrapola o comum e o ordinário, mesmo para os dias de hoje. Após a traição da líder, uma outra assume, ela tem o nome druida de Urtra. Nela foi depositada as últimas esperanças para conduzir e salvar a tradição, a magia antiga e os ensinamentos revelados.

Medricie será iniciada na magia, e sua vida nunca mais será a mesma. O contato com Urtra, uma feiticeira-loba, a libertará das culpas e dos medos. Urtra é uma bruxa maior, ligada aos lobos por uma tradição da Magia Natural e a uma fonte de poder que está além deste mundo.


CAPÍTULO I

A VELHA BRUXA

Naquela hora da tarde, inflexíveis sombras dominavam a fachada inferior da casa, parecendo que a parti dali a cobririam com vestes solenes. O silêncio mélico dos campos ia se desfazendo vagarosamente, enquanto o crescente zunido dos insetos anunciava a chegada da noite. A bruxa escrevia, recostada numa cadeira de carvalho, o conhecimento de uma vida inteira. Possuía a diligência própria dos visionários e dos que aguardam a derradeira passagem.

Naquele momento também, ela observava ao longe, atenta e intrigada, o horizonte cor de cobre. Por aquelas bandas, as nuvens mais baixas eram tingidas em vários tons rubros, carregando-se ainda mais na cor conforme a escuridão avançava. Em certo ponto, viam-se os mesmos fulvos raios prorrompendo acima dos bastiões montanhosos para depois desaparecerem no manto da noite. Encantada com o que assistia, às vezes, um aparente desleixo tomava o curso da escrita. Assim, rabiscava o papel de forma livre, embora por perícia do ofício as idéias não se viam ali ameaçadas, pelo contrário, fabricavam-se umas às outras.

Palavras e mais palavras davam vida ao misterioso escrito, mesmo se elas, como tépidas folhas, caíssem imprecisas, enrugadas e mortas. Serviam ao menos para fertilizar o árido papel em branco, isto quando não se transformavam na viçosa folhagem das letras. Então, o vento do espírito, por entre os ramos bordados de tinta, soprava a brisa ágil e fecunda, sendo possível até ouvir, no farfalhar das folhagens, estes sons das mudas letras:

Nasci pelas ordens que formaram o mundo nas inumeráveis dobras do tempo, tempo este no qual os nomes dos reis figuravam como lei maior. Acorrentada ao destino como um ser atormentado e inquieto, possuía uma enorme fome pela vida e no que nela se expressa como dor e prazer. Deparei-me então, com a força poderosa da magia que me transformou por dentro e por fora e no que me tornei nesta existência ¾ com esta casca humana ¾ uma feiticeira do fogo e da terra cuja semente viera das estrelas. Vi, ante meus olhos fascinados, o que para a maioria das pessoas poderia ser uma imponderável realidade: numa noite sem lua, a cidade dos anjos aparecer com a luminosidade do sol, para de alguma forma, acredito eu, emprestar mais nobreza ao mundo dos homens.


Tenho, é verdade, deste mundo, a dor de tantos outros que perderam seus entes mais queridos. Na minha longa vida, minhas inesquecíveis companheiras, as herdeiras das tradições que guardam o primado da Mãe Terra e da Grande Loba. Tudo, como ainda me recordo daquela ocasião, aconteceu repentinamente, quando no seio da nossa irmandade, a qual chamávamos Irmandade da Loba, fomos vítimas da traição de uma das nossas líderes ¾ Deirdhre Gridelim. Possibilitando aos tão temidos inquisidores prepararem uma cilada nos arredores de uma vila, passagem para a secular cidade de Albi, sul da França. Muitas foram capturadas ou mortas, embora um pequeno grupo conseguisse escapar do confronto inicial, retornando ao Vale dos Lobos, nosso lar. Nesse retorno, uma matriarca morreu e outra de nossas irmãs, de nome Itangra, decidiu não seguir na mesma direção. Se sua sorte fora melhor, nós não sabíamos ao certo, pois os inquisidores continuaram incansáveis em nosso encalço até nos alcançarem no Vale dos Lobos. Por muito pouco não fomos capturadas. Neste episódio, duas de minhas irmãs-lobas, Lintra e Singra, em nobre sacrifício, ofereceram-se para permanecerem ali com o propósito de reterem o máximo os nossos perseguidores e garantir ao restante do grupo das feiticeiras uma maior chance na fuga.


A verdade era que apenas seis de nós, feiticeiras-lobas, restavam livres da pesada mão dos seculares inquisidores quando partimos para sempre da nossa amada terra. Por fim, ainda sofremos um derradeiro revés no momento em que esse pequeno grupo de feiticeiras teve que se dividir: eu, de nome Urtra, consagrada matriarca da Irmandade da Loba, segui, junto com a menina Yalana, o caminho para oeste; Cailantra, Virna, Urânia e a menina Isiandra tomaram uma outra direção, um curso mais para o norte. Tudo está descrito no livro Da Claridade e Das Sombras, redescoberto por mim há pouco tempo. Já reli uma boa parte de seu conteúdo e continuarei lendo até o final, a fim de rememorar todos os acontecimentos daquela época de aventuras e perigos constantes. Isto, enquanto aguardo cumprir a promessa que precede, até mesmo, a existência das primeiras letras desse importante livro, a misteriosa pessoa que virá reclamá-lo como herdeiro.


No meu entendimento, tenho acreditado que cumpri, como desafio maior, a parte que me coube no serviço da antiga ordem das mulheres-lobas. E estou certa que tive a sorte de contemplar a face de deuses esquecidos que me vieram assustados com os labores dos homens. E, não menos importante, aqueles que vieram do abismo celeste, anjos ou demônios, para me dotarem de poder e revelarem segredos sobre a origem de uma parte da humanidade. Contudo, ainda não alcancei a sabedoria dos antigos artífices da magia que poderia me libertar das encarnações em vidas futuras, entendendo a necessidade delas no aprimoramento contínuo de minhas imperfeições humanas. Hoje, nesta minha idade adiantada, ou assim me parece, com a graça desses anjos caídos, sinto uma única e enorme perplexidade nas horas que olho para o céu noturno. Tudo por compreender que, de alguma forma, o futuro está lá, nas estrelas.



O AUTOR
Carlos Costa formou-se em Odontologia e depois em Psicologia e, como ele mesmo costuma dizer, indo do dente ao transcendente. Nascido em Itapetinga, Bahia, numa família fervorosamente católica, percebeu desde a tenra idade certa inquietação existencial, aliada ao interesse por astronomia, pelos grandes mistérios e pela vida além das estrelas. Desenvolveu cedo o gosto pelos livros, seus únicos companheiros nessa fase que, talvez, pudessem lhe dar respostas.

Em Salvador, onde reside, iniciou sua busca espiritual descobrindo as religiões orientais e o ocultismo. Mais tarde aprofundou a vocação espiritual ao se iniciar no caminho da Magia e nas velhas religiões, tendo neste período diversas experiências com o sagrado. Divide seu tempo entre a clínica em psicologia, o ensino e os escritos.

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